sábado, 19 de novembro de 2016

A importância do silêncio...saber ouvir


"...Foi nessa altura que um homem, vindo do lado de cima, virava agora a esquina, e começava a descer aquela mesma rua, e pelo mesmo passeio em que eu a subia.
Assumi, tacitamente, que aquele homem e eu iríamos passar um pelo outro, naturalmente, e cada um de nós seguiria o seu caminho, como acontece tantas vezes, em cada hora que passa, numa cidade onde há ruas e pessoas que as percorrem e se cruzam.
Não foi, porém, isto o que naquele momento daquela tarde tranquila aconteceu.
Aquele homem, quando se achou suficientemente próximo de mim, parou subitamente. Parou – e o peso da sua presença, e a forma particularmente intensa com que me olhou, obrigaram-me a mim a parar também.
Sem se deter um instante em formalidades de natureza social, aquele homem dirigiu-se-me. Dirigiu-se-me – e invadiu-me com uma tal explosão de palavras que lhe jorravam da boca como uma conduta de água que tivesse, de repente, rebentado. E invadiu-me com o peso da ansiedade que cada uma dessas palavras transportava para dentro de mim.
Não falava, propriamente, comigo; não falava, sequer¸ propriamente para mim: as palavras, a música da voz, a intensidade do olhar, as expressões fisionómicas, e a linguagem corporal daquele homem eram eficazes instrumentos através dos quais este homem me invadia, violentamente, com o que o torturava.
Tinha acabado de sair dos serviços administrativos do hospital militar que naquela altura ficava a uns metros dali. Tinha estado na guerra, no Ultramar. Combatera em Angola durante anos. Tinha sido emocionalmente atingido pela infinita brutalidade da guerra, e pela infinita estupidez dos homens que as promovem.
Agora, a Pátria que ele servira, ignorava-o. Não o ouvia. O antigo combatente da guerra em defesa da Pátria desesperava do combate que a Pátria, que tinha deixado de precisar dele, movia agora contra ele. Era agora um combatente impotente na guerra contra uma Pátria impotente e ingrata.
Naquela tarde doce de Primavera, ouvi distintamente, nas palavras de um homem que nunca tinha visto antes, e nunca voltaria a ver, o que ele naquele momento não conseguia conter dentro de si próprio: ouvi a indignação que o consumia; a violência do sentimento de injustiça que o invadia; ouvi-lhe o terrível ruído da revolta, e aquele que a raiva da impotência para se defender da brutalidade com que a Pátria agora o ignorava.
Ouvi-o. Ouvi-o talvez durante uns quinze minutos; talvez vinte. Não lhe disse uma única palavra. Ouvi-o. Ouvi-o em pé, imóvel, naquele mesmo passeio em que nos cruzámos por mero acaso.
Subitamente, este homem revoltado, à beira do descontrolo, parou de falar.
Parou – e olhou-me ainda mais intensamente, mas desta vez com uma expressão diferente nos olhos; olhou-me agora com perplexidade, numa expressão inquisitiva, talvez até mesmo doce, no meio de todas aquelas emoções desordenadas. Fixou-me, e eu a ele. Franziu intensamente as sobrancelhas, ao mesmo tempo que dava um passo atrás, afastando-se ligeiramente de mim. Recuou, talvez, um passo, um curto passo, como se me quisesse ver melhor, como se quisesse, talvez, perceber qualquer coisa que o surpreendia mas que no entanto parecia estar naquele momento a passar-se entre nós. Olhou-me longamente.
Num estranho e intenso silêncio, olhava-me ainda. Senti o impacto da sua perplexidade, mas não lhe lia o sentido.
Ainda em silêncio, levantou o braço direito, e apontou levemente para mim, como que à distância, ao longe.
E naquela posição, estática, particularmente concentrada, como se estivesse a representar uma estranha peça de teatro, disse-me, embora talvez mais como se estivesse a dizer-se a si próprio: ‘Mas… mas… o senhor sabe ouvir!…” E no instante em que acabou de dizer essa curta frase: ‘o senhor sabe ouvir…’, voltou-se de novo para a rua, agora de costas para mim, e sem mais uma palavra, retomou o seu caminho no sentido em que, uns minutos antes, descia aquela mesma rua tranquila.
Pela minha parte, no entanto, sei bem que levei aquela conversa comigo para a vida, e que ainda hoje ela me ensina a seguir, mais atentamente, a forma como as pessoas falam umas com as outras, e como, falando, raramente falam umas com as outras.

João Sousa Monteiro
Lisboa, 29 de Agosto, de 2016

(Dr. João Sousa Monteiro, Psicanalista Lisboa, 29 de Agosto, de 2016 Dedico esta curta história a João dos Santos, o meu primeiro grande Mestre na difícil arte de ouvir, e na descoberta da interminável preciosidade do silêncio).

"João dos Santos é uma presença luminosa do século XX. A sua ação nos domínios da saúde e da educação marca o nosso pensamento mais inteligente, e mais sensível, sobre a infância." António Sampaio da Nóvoa, 6 de Setembro de 2013

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