"...Foi nessa altura que um homem, vindo do lado de cima, virava agora a esquina, e começava a descer aquela mesma rua, e pelo mesmo passeio em que eu a subia.
Assumi, tacitamente, que aquele homem e eu iríamos passar um pelo outro, naturalmente, e cada um de nós seguiria o seu caminho, como acontece tantas vezes, em cada hora que passa, numa cidade onde há ruas e pessoas que as percorrem e se cruzam.
Não foi, porém, isto o que naquele momento daquela tarde tranquila aconteceu.
Aquele homem, quando se achou suficientemente próximo de mim, parou subitamente. Parou – e o peso da sua presença, e a forma particularmente intensa com que me olhou, obrigaram-me a mim a parar também.
Sem se deter um instante em formalidades de natureza social, aquele homem dirigiu-se-me. Dirigiu-se-me – e invadiu-me com uma tal explosão de palavras que lhe jorravam da boca como uma conduta de água que tivesse, de repente, rebentado. E invadiu-me com o peso da ansiedade que cada uma dessas palavras transportava para dentro de mim.
Não falava, propriamente, comigo; não falava, sequer¸ propriamente para mim: as palavras, a música da voz, a intensidade do olhar, as expressões fisionómicas, e a linguagem corporal daquele homem eram eficazes instrumentos através dos quais este homem me invadia, violentamente, com o que o torturava.
Tinha acabado de sair dos serviços administrativos do hospital militar que naquela altura ficava a uns metros dali. Tinha estado na guerra, no Ultramar. Combatera em Angola durante anos. Tinha sido emocionalmente atingido pela infinita brutalidade da guerra, e pela infinita estupidez dos homens que as promovem.
Agora, a Pátria que ele servira, ignorava-o. Não o ouvia. O antigo combatente da guerra em defesa da Pátria desesperava do combate que a Pátria, que tinha deixado de precisar dele, movia agora contra ele. Era agora um combatente impotente na guerra contra uma Pátria impotente e ingrata.
Naquela tarde doce de Primavera, ouvi distintamente, nas palavras de um homem que nunca tinha visto antes, e nunca voltaria a ver, o que ele naquele momento não conseguia conter dentro de si próprio: ouvi a indignação que o consumia; a violência do sentimento de injustiça que o invadia; ouvi-lhe o terrível ruído da revolta, e aquele que a raiva da impotência para se defender da brutalidade com que a Pátria agora o ignorava.
Ouvi-o. Ouvi-o talvez durante uns quinze minutos; talvez vinte. Não lhe disse uma única palavra. Ouvi-o. Ouvi-o em pé, imóvel, naquele mesmo passeio em que nos cruzámos por mero acaso.
Subitamente, este homem revoltado, à beira do descontrolo, parou de falar.
Parou – e olhou-me ainda mais intensamente, mas desta vez com uma expressão diferente nos olhos; olhou-me agora com perplexidade, numa expressão inquisitiva, talvez até mesmo doce, no meio de todas aquelas emoções desordenadas. Fixou-me, e eu a ele. Franziu intensamente as sobrancelhas, ao mesmo tempo que dava um passo atrás, afastando-se ligeiramente de mim. Recuou, talvez, um passo, um curto passo, como se me quisesse ver melhor, como se quisesse, talvez, perceber qualquer coisa que o surpreendia mas que no entanto parecia estar naquele momento a passar-se entre nós. Olhou-me longamente.
Num estranho e intenso silêncio, olhava-me ainda. Senti o impacto da sua perplexidade, mas não lhe lia o sentido.
Ainda em silêncio, levantou o braço direito, e apontou levemente para mim, como que à distância, ao longe.
E naquela posição, estática, particularmente concentrada, como se estivesse a representar uma estranha peça de teatro, disse-me, embora talvez mais como se estivesse a dizer-se a si próprio: ‘Mas… mas… o senhor sabe ouvir!…” E no instante em que acabou de dizer essa curta frase: ‘o senhor sabe ouvir…’, voltou-se de novo para a rua, agora de costas para mim, e sem mais uma palavra, retomou o seu caminho no sentido em que, uns minutos antes, descia aquela mesma rua tranquila.
Assumi, tacitamente, que aquele homem e eu iríamos passar um pelo outro, naturalmente, e cada um de nós seguiria o seu caminho, como acontece tantas vezes, em cada hora que passa, numa cidade onde há ruas e pessoas que as percorrem e se cruzam.
Não foi, porém, isto o que naquele momento daquela tarde tranquila aconteceu.
Aquele homem, quando se achou suficientemente próximo de mim, parou subitamente. Parou – e o peso da sua presença, e a forma particularmente intensa com que me olhou, obrigaram-me a mim a parar também.
Sem se deter um instante em formalidades de natureza social, aquele homem dirigiu-se-me. Dirigiu-se-me – e invadiu-me com uma tal explosão de palavras que lhe jorravam da boca como uma conduta de água que tivesse, de repente, rebentado. E invadiu-me com o peso da ansiedade que cada uma dessas palavras transportava para dentro de mim.
Não falava, propriamente, comigo; não falava, sequer¸ propriamente para mim: as palavras, a música da voz, a intensidade do olhar, as expressões fisionómicas, e a linguagem corporal daquele homem eram eficazes instrumentos através dos quais este homem me invadia, violentamente, com o que o torturava.
Tinha acabado de sair dos serviços administrativos do hospital militar que naquela altura ficava a uns metros dali. Tinha estado na guerra, no Ultramar. Combatera em Angola durante anos. Tinha sido emocionalmente atingido pela infinita brutalidade da guerra, e pela infinita estupidez dos homens que as promovem.
Agora, a Pátria que ele servira, ignorava-o. Não o ouvia. O antigo combatente da guerra em defesa da Pátria desesperava do combate que a Pátria, que tinha deixado de precisar dele, movia agora contra ele. Era agora um combatente impotente na guerra contra uma Pátria impotente e ingrata.
Naquela tarde doce de Primavera, ouvi distintamente, nas palavras de um homem que nunca tinha visto antes, e nunca voltaria a ver, o que ele naquele momento não conseguia conter dentro de si próprio: ouvi a indignação que o consumia; a violência do sentimento de injustiça que o invadia; ouvi-lhe o terrível ruído da revolta, e aquele que a raiva da impotência para se defender da brutalidade com que a Pátria agora o ignorava.
Ouvi-o. Ouvi-o talvez durante uns quinze minutos; talvez vinte. Não lhe disse uma única palavra. Ouvi-o. Ouvi-o em pé, imóvel, naquele mesmo passeio em que nos cruzámos por mero acaso.
Subitamente, este homem revoltado, à beira do descontrolo, parou de falar.
Parou – e olhou-me ainda mais intensamente, mas desta vez com uma expressão diferente nos olhos; olhou-me agora com perplexidade, numa expressão inquisitiva, talvez até mesmo doce, no meio de todas aquelas emoções desordenadas. Fixou-me, e eu a ele. Franziu intensamente as sobrancelhas, ao mesmo tempo que dava um passo atrás, afastando-se ligeiramente de mim. Recuou, talvez, um passo, um curto passo, como se me quisesse ver melhor, como se quisesse, talvez, perceber qualquer coisa que o surpreendia mas que no entanto parecia estar naquele momento a passar-se entre nós. Olhou-me longamente.
Num estranho e intenso silêncio, olhava-me ainda. Senti o impacto da sua perplexidade, mas não lhe lia o sentido.
Ainda em silêncio, levantou o braço direito, e apontou levemente para mim, como que à distância, ao longe.
E naquela posição, estática, particularmente concentrada, como se estivesse a representar uma estranha peça de teatro, disse-me, embora talvez mais como se estivesse a dizer-se a si próprio: ‘Mas… mas… o senhor sabe ouvir!…” E no instante em que acabou de dizer essa curta frase: ‘o senhor sabe ouvir…’, voltou-se de novo para a rua, agora de costas para mim, e sem mais uma palavra, retomou o seu caminho no sentido em que, uns minutos antes, descia aquela mesma rua tranquila.
Pela minha parte, no entanto, sei bem que levei aquela conversa comigo para a vida, e que ainda hoje ela me ensina a seguir, mais atentamente, a forma como as pessoas falam umas com as outras, e como, falando, raramente falam umas com as outras.
João Sousa Monteiro
Lisboa, 29 de Agosto, de 2016
Lisboa, 29 de Agosto, de 2016
(Dr. João Sousa Monteiro, Psicanalista Lisboa, 29 de Agosto, de 2016 Dedico esta curta história a João dos Santos, o meu primeiro grande Mestre na difícil arte de ouvir, e na descoberta da interminável preciosidade do silêncio).
"João dos Santos é uma presença luminosa do século XX. A sua ação nos domínios da saúde e da educação marca o nosso pensamento mais inteligente, e mais sensível, sobre a infância." António Sampaio da Nóvoa, 6 de Setembro de 2013
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